sábado, 22 de agosto de 2009

PERGUNTAS QUE PRECISAM DE RESPOSTAS

Philip Yancey 
Capítulo 1 - A vida com Deus
CÔNJUGE REJEITADO


Isolei–me em um chalé nas montanhas do Colorado durante duas semanas de inverno. Levei comigo uma mala cheia de livros e anotações, mas, ao voltar, descobri que só havia aberto um deles: a Bíblia. Comecei a ler em Gênesis e segui em frente. Do lado de fora, a neve caía furiosamente. Quando cheguei em Deuteronômio, a neve cobria o primeiro degrau da escada externa. Atingi os profetas e ela chegou à caixa de correio. Finalmente, quando terminei Apocalipse, precisei chamar um caminhão para desobstruir a entrada da casa. Mais de 1,80m de pó gelado caiu durante o tempo que passei lá.
A combinação de som abafado da neve caindo, isolamento e concentração mudou para sempre o modo como leio a Bíblia. A percepção mais surpreendente que me veio naquela leitura foi que nossas impressões costumeiras de Deus podem ser muito diferentes do que a Bíblia realmente retrata. Nos livros de teologia lemos sobre os decretos de Deus, e características como onipotência, onisciência e imutabilidade. Estes conceitos encontram–se na Bíblia, mas bem escondidos, e é necessário esforço para vê–los. Leia as Escrituras e você encontrará não uma névoa indistinta, mas uma Pessoa real. Deus sente prazer, raiva e frustração. Uma vez após outra se choca com o comportamento humano. Algumas vezes, depois de decidir agir de uma forma, Ele "muda de idéia".
Eu sei bem que o termo elegante "antropomorfismo" pode explicar todos estes retratos com características humanas. E mesmo assim, lendo a Bíblia inteira de uma vez, como fiz, é impossível não ser esmagado pela alegria e angústia. Em resumo: pela paixão – do Senhor do Universo. É verdade que Deus "toma emprestadas" imagens da experiência humana para se comunicar de modo que possamos compreender, mas certamente essas imagens apontam para uma realidade ainda maior atrás delas. Por exemplo: nos profetas duas imagens são proeminentes: a do pai irado e a do conjugue desprezado.
Para minha surpresa, o livro que mais me afetou foi Jeremias, provavelmente por expressar estas duas imagens de um Deus apaixonado com tanta força emocional. Os primeiros capítulos mostram um pai ofendido tentando argumentar com um filho irremediavelmente rebelde. Deus recorda como conduziu seus filhos através do deserto hostil, providenciando alimento e água durante todo o caminho, para levá–los a uma terra fértil e de prosperidade. No capítulo 3, versículo 19, Ele diz:
Tu me chamarás meu pai, e de mim não te desviarás.
Em vez disso, a nação seguiu outros caminhos, afastando–se de Deus. Foram até ao ponto de realizar sacrifícios de crianças, e o Deus onisciente fala sobre esta prática:

O que nunca lhes ordenei, nem falei, nem me veio ao pensamento. (19:5, 7:31)
As conversas de Deus com Jeremias mostram a raiva, a inutilidade das tentativas de resolver os problemas e, por trás disso, a dor, semelhante à que todos os pais sentem de vez em quando. Subitamente, parece que o amor altruísta dedicado durante toda a vida foi desperdiçado, desprezado. Esperanças arraigadas murcham e morrem. O filho, resolvido a enfiar uma faca na barriga de seus pais, desafia–os com seu comportamento chocante, agindo de um modo que "nem me veio ao pensamento".
Mais tarde Jesus usaria uma imagem ainda mais primitiva, do reino animal, quando chorava perto de uma cidade que, alguns dias depois, cometeria uma forma de parricídio eterno.
Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados! quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste! (Mateus 23:37)
A Bíblia mostra o poder de Deus forçando Faraó a se ajoelhar e reduzindo o poderoso Nabucodonosor a um lunático ruminante. Mas também mostra a impotência do poder de criar o que Deus mais deseja: nosso amor. Quando seu amor é desprezado, até mesmo Ele, o Senhor do Universo, sente, de certa forma, o que um pai sente quando perde o que mais valoriza, ou uma galinha que assiste, impotente, a seus filhotes avançarem rumo ao perigo.
Em Jeremias, o modo de falar muda, algumas vezes no meio da sentença, do de pai para o de amante. Uma vez após outra, Deus usa as palavras surpreendentes de um amante traído. Ele diz para Judá:
Conhece o que fizeste; dromedária, ligeira és, que anda torcendo os seus caminhos. Jumenta montes, acostumada ao deserto, que, conforme o desejo da sua alma, sorve o vento, quem a deteria no seu cio? (2:23,24)
O tom das palavras de Deus em Jeremias varia amplamente, passando abruptamente destes gritos ultrajados de dor para súplicas calorosas de amor, e depois para apelos desesperados por um recomeço. A alternância brusca no tom pode ser desconcertante, a não ser que se tenha experimentado algo semelhante ao que Deus descreve. Ele reage como um conjugue desprezado. Uma de minhas amigas enfrentou dor semelhante a esta durante dois anos. Em novembro, estava disposta a matar o marido infiel. Em fevereiro, havia perdoado e moravam juntos de novo. Em abril, deu entrada no pedido de divórcio. Em agosto, desistiu do processo e pediu ao marido que voltasse para casa. Foram necessários dois anos para que ela encarasse a verdade: seu amor fora rejeitado para sempre, sem esperança de retorno.
A imagem do cônjuge ferido em Jeremias (ou em Oséias, onde é representado ao vivo) é espantosa, não consigo entender totalmente. Por que Deus, que criou tudo que existe, submeter–se–ia voluntariamente a essa humilhação infligida por suas criaturas? No Colorado, enquanto percorria as páginas da Bíblia, perseguiu–me a realidade de um Deus que permite que nossa reação a Ele tenha tamanha importância.
Ao voltar para Chicago, comecei a pesquisar livros de teologia. Percebi, mais uma vez, um perigo em nossos "estudos" sobre Deus. Quando O prendemos em palavras ou conceitos e O arquivamos, seguindo a ordem alfabética de suas características, podemos, facilmente, deixar escapar a força do relacionamento apaixonado que Ele anseia, acima de tudo, manter conosco. Talvez não haja perigo maior do que este para nós que escrevemos, falamos ou, até mesmo, pensamos sobre Deus. Para Ele, meras abstrações podem ser o mais cruel dos insultos.
Depois de duas semanas lendo a Bíblia inteira, emergi convicto de que Deus não se importa muito em ser analisado. 
Acima de tudo – como qualquer pai, como qualquer amante —, deseja ser amado.

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